domingo, 27 de janeiro de 2013

MARCAS DE UMA VIDA


Nenhum de nós sabe que marca deixará no outro. E isso muitas vezes pode ser surpreendente.

Ele era um cara comum. Queria para sua vida todas as vitórias que a gente habitualmente deseja. Tinha, como um cara comum, muitos defeitos e muitas qualidades, estas últimas causando mais impacto do que os defeitos. Uma característica marcante, e que talvez por isso ambígua, era ser orgulhoso (dependendo do ponto de vista, ou por outra, da intensidade, isso pode navegar tranquilamente entre o positivo e o negativo). Orgulhoso para não pedir ajuda a ninguém, para não admitir suas fraquezas e para cortar-lhe a própria carne para afastar o dissonante, mas também orgulhoso pelas vitórias dos que lhe eram caros, por lutar o bom combate e por de certa forma ser um sobrevivente.

Lembro bem de outra faceta – vivia o hoje intensamente. Dizia levar a vida na flauta (demorei um tanto para entender o significado desta expressão).   Com isso protagonizou episódios hilários, como quando dirigiu mais de setecentos quilômetros num só dia apenas para dar um mergulho na praia de Atalaia. Ou como o dia em que chorou vendo na televisão passar Os Filhos de Gandhi, do outro lado da baía. E quando em pleno Terraço Itália chamou o maitre para dizer  que a comida estava quase perfeita, mas estava faltando farinha.

Os ouvidos eram bem alimentados; gostava Billy Holliday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaugan e Frank Sinatra. Sobrava espaço para Paulinho da Viola, Chico Buarque e tantos outros que embalaram sua geração. Uma geração ligada em roupas de bom corte e sapatos de couro legítimo, que sabia dar valor a um bom linho. Não por acaso havia feito parte dos Dez Mais ( era como se denominava o grupo de rapazes bem vestidos que se encontrava na Rua Chile nos saudosos anos 60).

E a paixão pelo mar, incansável e inabalável, um dos grandes prazeres, trabalho e lazer. Usava com frequência a expressão “tombo do mar” para descrever e valorizar seu ganha-pão.

Dedicação à família era uma característica imperiosa. Com todo apreço pela boemia e toda a curiosidade com o mundo que o cercava, o convívio familiar consistia num porto seguro e estava acima de todas as coisas. Essa convivência representou um grande aprendizado mútuo e sobremaneira moldou a forma que seus filhos conceituam família.


E amou, amou demais e deixa essa sim a grande marca nos seus, a quem se dedicou a vida inteira. Vem sempre à mente a canção de Sinatra – “amei, sorri, chorei , cometi meus erros, tive minhas perdas e fiz isso do meu jeito”.

domingo, 20 de janeiro de 2013

CARA LUCIDEZ


Cara Lucidez,

Prometemos um casamento eterno, que apenas a morte seria capaz de nos separar, mas como em todas as uniões, alguma das partes acaba por se retirar primeiro.

A vida inteira pensei que chegar à velhice só valeria à pena se guardasse minha lucidez. Costumava dizer que não queria dar trabalho a ninguém. Para o bem ou para o mal, ninguém prevê o que o futuro nos reserva.

Muito cedo precisei agarrar as rédeas de meu destino. A inocência de outrora deu lugar a uma maturidade precoce nascida da necessidade. Certamente por isso nunca tivesse tido medo de trabalho, acumulando jornadas por longo tempo. Imaginava que isso era bom uma vez que mantinha a mente em plena atividade.

Conheci muita gente boa pelo caminho, vivi intensamente alegrias e tristezas, viajei pelo mundo. Tanta coisa foi acontecendo e eu me sentindo cada vez mais dona da situação. Servi de exemplo para filhos e netos, tornei-me símbolo de longevidade.

Tudo isso também teve um preço. Assistir a partida de tantas pessoas queridas pesou muito a jornada. Essa é uma parte especialmente difícil; aqueles que compõem sua história vão sumindo e com eles uma parte de você.

Eu aguento tudo, firme, embora o corpo já não responda na velocidade que o pensamento corre. E quando imagino que a proximidade do fim não nos separará, eis que nos perdemos uma da outra.

Sem você, cara lucidez, passo a ser a sombra de quem um dia fui, vagando em alguma realidade paralela onde nem eu mesma me reconheço. O único consolo de estar distante de você é que em seu lugar surge uma inocência quase infantil e com ela eu sigo sem lamentações. 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

E A VIDA CONTINUA


Toda virada de ano é a mesma coisa; junta-se esperanças de que tudo poderá ser diferente, ainda que o último dia do ano jamais seja um ponto, mesmo que de continuação. Para o bem ou para o mal não há como apagar tudo e reescrever de onde parou. É preciso seguir lidando com velhas frustrações que aos poucos podem dar espaço a novas realizações, mas essa atmosfera de renovação é muito bem vinda, impulsiona sonhos e projetos, além de ser capaz de manter acesa a chama interior que faz todo ser humano ir em frente.

Confraternizar com a família e os amigos é um modo de alimentar essa energia boa de fim de ano. É um tempo de deixar transbordar o amor que une uns aos outros, mas é um tempo também de expurgar fantasmas e acertar as contas, com o presente e muitas vezes com o passado. É possível que esta catarse proporcione rupturas, as quais a longo prazo se mostram necessárias para um convívio mais verdadeiro entre as pessoas. Remexer no passado e tocar velhas feridas pode soar doloroso, algo para ser evitado a todo custo, contudo pode nascer daí a possibilidade de conhecer melhor a si e aos que te cercam. No final permanece a força dos laços indissolúveis que mantém as pessoas agarradas umas às outras.

É um tempo também de rever os rumos no âmbito profissional, se perguntar se está no caminho certo, se o que se tem é o que se quer. Questionamentos como esses podem abalar alicerces tidos como firmes, e isto mais uma vez pode ser a mola propulsora para uma guinada. Revirar esse baú pode ser o passo que faltava para uma transformação desejada e necessária.

Impossível não pensar no mundo como um todo, o que está sendo feito de nossa sociedade e quais as alternativas para manter os ideais de igualdade entre os povos. Pensar também nas alternativas de desenvolvimento sustentável e conservação dos patrimônios da humanidade para que nossa história continue sendo contada muito tempo adiante.

À parte as mutações inevitáveis e estimadas, há toda uma gama de coisas que Jamais mudam, e com o tempo vai se acomodando à rotina diária e se adaptando à linha de montagem cotidiana. Ainda assim é crucial distinguir o que pode e deve ser mudado daquelas coisas que precisam permanecer como são, sem deixar-se abater e sem se entregar ao comodismo e à inércia. Durante os mais de trezentos e sessenta dias restantes é importante reavivar aquele sentimento de que tudo pode dar certo, manter a cabeça erguida e o coração cheio de boas energias para encarar o mundo sempre com esse olhar para fazer o ano verdadeiramente feliz e novo. Afinal a vida sempre continua.