domingo, 25 de novembro de 2012

DORES E DELÍCIAS


Lá vem ela de novo. Essa multimulher não para nem por um segundo, até seu sono é produtivo ( e ai dele se não for!). Mas como falar de dores e delícias sem falar da multimulher, o protótipo da ambiguidade.  No campo maternidade então, essa assertiva se realiza plenamente.

Ser mãe tem tudo a ver com a letra de Caetano Veloso que diz “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, até porque, com perdão do trocadilho, a maternidade tem seu dom de iludir, e também por isso é uma aventura maravilhosa.

A gestação, à parte a possibilidade dos enjôos, mal estar e repouso forçado para algumas, é uma ilusão fantástica. Está ali o pequenino ser no ventre, podendo ser levado a qualquer lugar, obediente e sob controle. A áurea sublime que cerca esse momento parece ser uma trégua providencial para o dia em que seu bebê vem ao mundo se seu peito racha, sua bexiga dói e seus olhos pesam. Até você, que nunca curtiu uma rave vai curtir a noitada e vai entrar em alfa ao trocar olhares com aquela pessoinha na madrugada. (Parênteses para alerta: depois das primeiras noites, já estabelecida a relação, opte por não estabelecer contato visual, não acenda luzes e faça o mínimo barulho possível; verá que é mais fácil fazer o rebento dormir novamente). Ainda assim, sentir-se realizada é a tônica.

Com crianças pequenas o trabalho braçal é enorme, muitas vezes parece se estar correndo num carrossel de hamster; não há como descer. E é mesmo um processo que se autoalimenta; acorda, dá comida, dá banho, brinca, se suja dá mais banho, mais comida, brinca, se suja... não sem um beijinho gostoso com a sinceridade que só criança tem, um abraço com aquela mão de chocolate e aquela exclusiva troca de olhar. E nas noites febris vem tanto aperto no coração (mesmo que você chega médica, e pediatra; esta ainda pior pela quantidade de possibilidades diagnósticas que lhe vem à cabeça), trocaria de lugar facilmente e faria qualquer coisa para devolver-lhe o bem-estar. Felizmente há a incrível capacidade de recuperação das crianças, e com ela o retorno da tranquilidade. Quem sempre foi cheia de nove horas para tudo, agora põe a mão em cocô, xixi e toda sorte de secreções sem cerimônia. E está tudo certo!
           
Para as mães dos maiores entra em cena mais uma tarefa, a de motorista. É um tal de leva para a escola, da escola para a natação, daí para o balé e depois ainda tem a aula de inglês, de robótica, de judô, e um sem número de coisas que esses pequenos executivos fazem nos dias de hoje. A multimulher supira cansada, a esta altura já não se culpa por querer dar uma parada de vez em quando, mas a cumplicidade continua, e se sente a alegria da missão sendo cumprida e ver que contribui para entregar ao mundo um ser humano valoroso.

A vida segue, e provavelmente algum dia a angústia do ninho vazio vai passar por aquela mulher, contudo a sua essência multi-interessada a fará ter outros focos para colocar sua energia, embora sempre exercendo a maternidade, ainda que posicionada de uma outra forma. Tudo porque aquela primeira troca de olhar simboliza um laço absolutamente insolúvel e faz parte das delícias da maternidade, que estão acima de todas as dores. 


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A MULTIMULHER, O CASAMENTO E A PANELA DE PRESSÃO



Com a correria do dia-a-dia é comum não encontrar tempo para se reunir com os amigos. Aquela saída divertida longe das preocupações domésticas é sempre bemvinda e saudável. Ela fortalece os laços de amizade, relaxa das tensões do cotidiano, além de servir para enriquecer as relações dos casais, uma vez que possibilita ter novidades para contar, manter-se vivo e interessante para o outro.

A individualidade é fator importante no casamento. Por mais que se viva em completa harmonia, a simbiose não pode ser tal que anule os anseios e as percepções de cada um. Estar bem consigo mesmo, emitir suas próprias opiniões e manter seus próprios interesses é o que faz o ser humano sentir-se pleno. Um estudo sobre terapia familiar intitulado “O difícil convívio da individualidade com a conjugalidade”, da professora da PUC-RJ Terezinha Féres-Carneiro, aponta bem o que a questão envolve. O título já é bastante esclarecedor, mostrando que de fato a dualidade vivida pelos pares num casamento é delicada e alcançar uma harmonia não é fácil, até porque, à primeira vista parecem excludentes. A pesquisa afirma que na lógica do matrimônio um e um são três – dois sujeitos (duas percepções de mundo) geram uma identidade conjugal, um projeto de vida. Criar este modelo único pressupõe espaço para cada personalidade expressar o que sente. E é neste ponto com muitos relacionamentos engasgam, o que cedo ou tarde traz cobranças mútuas, arestas que se não forem aparadas determinaram o fim.

Manter vivo esse espaço de manifestação das personalidades num casal é um trabalho de formiguinha, uma construção diária que demanda atenção. Um dos pilares desta construção é estar com os amigos (os seus, os meus e os nossos), o que promove equilíbrio emocional para o casal. Ter privacidade com os amigos, falar bobagem, ser confidente de alguém e trocar experiências ajuda no crescimento pessoal e é muito importante, principalmente se imaginarmos que a maioria das amizades duram mais que os casamentos. Cultivar as amizades auxilia a quebrar a rotina e a falta de assunto que muitas vezes mina os relacionamentos. O casal que decide se fechar corre o risco de em algum momento implodir. É como uma panela de pressão; necessita de uma válvula de escape para respirar e ser aquela pessoa pela qual valeu a pena a conquista. As mulheres historicamente reconheceram esta necessidade mais tardiamente que os homens – o futebol com os amigos é um costumaz vilão nas batalhas domésticas. Toda multimulher, mesmo que no campo das idéias, trava um equivalente, mas sua característica primordial é se moldar à tal multiplicidade de papéis. Com o tempo ela foi conquistando um espaço na sociedade, e consequentemente no casamento, que propõe uma relação mais equânime, onde suas realizações pessoais e seu sucesso profissional também têm importância. Esta nova conformação ratifica que há vida fora do casamento e faz com que as pessoas fiquem juntas cada vez mais pelo prazer dessa troca. Ter seu “clube da Luluzinha” é ótimo, faz voltar para casa cheia de energia e disposição, te põe em movimento. No final é tão enriquecedor pessoalmente que reflete de forma positiva na qualidade e longevidade conjugal.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

REPONDO AS PENAS DO ANTIGO COCAR


Não se conta a história do Brasil sem que se fale dos índios que aqui já viviam antes de qualquer linha ser escrita. Diversas tribos que cultivavam seu alimento, passavam sua cultura de geração em geração e cultuavam seus deuses. A chegada de outros povos a esta terra rechaçou os índios, que não se adaptaram ao aculturamento promovido pelos europeus, e foram cada vez mais adentrando o continente. Com o tempo populações indígenas inteiras foram dizimadas na busca por terras de colonos, seguidos de garimpeiros e grileiros.

Oportuno lembrar a riqueza desta cultura, tantas línguas, hábitos e costumes diferentes do que conhecemos. São várias etnias, Carajás, Caiapós, Guaranis, Ianomamis e Tupis. Precisaram se adequar, de forma que grande parte deles acabou com as crenças esfaceladas e invadidas. Os que resistem passaram a ter que confrontar o cotidiano nas aldeias com a incersão social dos seus povos nas cidades com predomínio dos não-indígenas. Para esta resistência é fundamental preservar suas tradições, suas músicas e instrumentos musicais e seua rituais. Nestas aldeias o Pajé ainda é sábio e uma espécie de sacerdote, os alimentos são cultivados de forma artesanal e a relação com a natureza é mais harmônica. Tudo isso fica sob ameaça por interação com a sociedade em torno. Daquilo que foram há séculos, restam pouco mais de 220 sociedades indígenas pelo país.

Apesar desta realidade ser absolutamente pública, de séculos mais tarde existir uma unificação da miscigenada população brasileira e da Constituição datada de 1988 reconhecer direitos específicos dos povos indígenas, ainda se vê cenário semelhante. Ao longo do tempo tais terras, predominantemente nos estados do Amazonas e Mato Grosso do Sul, transformaram-se em grandes latifúndios, nas mãos de agricultores produtivos, o que é considerado importante para o desenvolvimento dessas regiões. O reconhecimento da propriedade ancestral destas terras se esbarra num conflito de difícil solução. Ir de encontro aos que detém o poder econômico não tem sido a tônica dos sucessivos governos, e enquanto não houver este enfrentamento os conflitos continuarão, cada vez mais sangrentos, com a derrota óbvia dos mais desprotegidos. E com uma derrota mais sutil, a do povo brasileiro por perder mais um pedaço de sua identidade.

Episódios recentes deram nova força à vozes indígenas, com a decisão da Justiça Federal em que os índios Guarani-kaiowá poderão permanecer na área ocupada pela Fazenda Cambará, no Mato Grosso do Sul. Reacendeu-se a discussão após apelo de grupos indígenas que diziam preferir ser mortos do que sair da terra tradicionalmente ocupada por seu povo, até porque a decisão da justiça é temporária, mantendo-os em apenas um hectare de terra, metade do que ocupavam anteriormente, enquanto não se define a legalidade da ocupação do local.  Não deixa de ser um tipo de preconceito racial sim imaginar que a cultura indígena deva ser esquecida pelos índios em nome de adotar um estilo de vida mais cosmopolita. Este tipo de pensamento já foi chamado de etnocídio, e o que é pior, feito de forma absurdamente compulsória. A luta é antiga e ganha novo fôlego em direção à necessidade de demarcação das terras com brevidade. Como envolve muitos interesses e de grandes produtores, é preciso um pacto da sociedade, como disse a atual presidente da Funai. Não basta vir uma decisão vertical, é necessário mobilizar dinheiro para retomar propriedades, é preciso que as partes tenham um entendimento de que são sacrifícios em prol da reparação e resgate desta parte de nossa história. É como pintar a cara e partir para a luta, repor as penas de um antigo cocar.