domingo, 22 de dezembro de 2013

A ORDEM NATURAL DAS COISAS

Atendi uma senhorinha, passada alguns anos dos oitenta. Nem parecia ter tal idade. O semblante era tranquilo, mas o olhar denunciava uma tristeza profunda. Apesar disso estava animada com a chegada do Natal e sentenciou de saída que a vida é ir tocando em frente – como diz a canção; “penso que seguir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”.

A tal senhorinha chegou dizendo que precisava ver o coração, se estava forte ainda, depois de tanto tempo. Comecei a fazer o exame e enquanto isso procedia minha anamnese para ajudar num possível diagnóstico. Enquanto via imagens de um paciente saudável, até surpreendentemente normal para aquela idade, e transmitia a boa notícia ela seguia contando sua história.

Já foi logo dizendo que o coração só parecia normal. Que o visto por fora nem de longe exprimia o que ia lá por dentro. Dizia carregar no peito um sofrimento tão imenso que por vezes sentia estar para explodir. Existem coisas na vida que marcam tão profundamente que mesmo com o passar dos anos não é possível apagar. Pode ser que a cicatriz vá ficando menos profunda, mas desaparecer é um luxo inatingível. E foi assim que a senhorinha me contou que existe uma ordem natural das coisas e que subvertê-la é ruim e em geral injusto. Há um fluxo natural que se perturba facilmente, é verdade, mas há também uma incapacidade humana de controlá-lo, ainda que na maior parte da nossa existência ostentemos a ilusão de fazê-lo. Ao longo de suas mais de oito décadas havia experimentado aquela sensação de ter o chão desaparecendo sob seus pés diversas vezes. O estranho (ou maravilhoso) é que nem por isso estava imune a novas tormentas, não tinha blindagem contra o sofrimento e vivia sempre os acontecimentos de uma forma diferente, com um olhar pueril. É bem verdade que a longa experiência de vida lhe facultava uma forte dose de resiliência, mas ainda assim sentia o impacto. Foi dessa forma quando o filho mais novo morreu em seus braços, de uma doença, segundo ela, de velho. Como é que podia aquilo? Os pais verem o filho partir. Definitivamente não é natural. E não importa quantos outros filhos se tenha, quantos anos se passe, para ela é como se tivesse sido ontem, na mente e na pele.

Eu, tão pequenininha naquela hora, reduzida diante da maturidade daquela senhorinha, daquela narrativa que tanto apertava meu coração de mãe, o que tinha a dizer? Desapareceu a cardiologista, ficou ali simplesmente a mulher, me agarrando nos meus mantras íntimos pessoais para alento nas horas difíceis “andar com fé pois a fé não costuma falhar”; “o senhor é meu pastor e nada me falta”. Não posso e nem me atrevo a imaginar que dor é essa de perder um filho, e permanecer de pé, a despeito de amargá-la (sem  contudo  se tornar amarga) todos os dias. É um dos encantos da minha profissão de lidar com gente e se deixar tocar por elas e por seus relatos de vida. E que força desse ser que passei a admirar em poucos minutos, se alegrando com o Natal, ressaltando que é o momento em que mais sente alívio de suas próprias dores por saber que tantos já passaram por dores piores e renasceram de alguma forma, que no fundo tudo tem um propósito.

Pensei tanta coisa para confortá-la, porém no final quem me confortou foi ela – “sabe aquela canção, minha filha, ela continua; ‘cada um de nós compõe a sua história e cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz’”. 

domingo, 8 de dezembro de 2013

MULHERES EM ALERTA




Um grupo de humoristas de Mumbai, o “All India Bakchod”, lançou este vídeo após um estupro coletivo na Índia ano passado. Na época as velhas proposições de culpabilidade da vítima foram ditas por pessoas importantes no país, o que suscitou muitos protestos. O vídeo usa a ironia para refutar estas opiniões conservadoras, as quais mostram que estupro não é apenas uma violência interpessoal, mais que isso, um tipo de crime com cunho social. Parece coisa lá da distante e populosa Índia, com uma cultura que escancaradamente coloca a mulher em segundo plano, mas é um problema em todo o mundo.

Há cerca de dois anos, após o estupro seguido de morte de uma garota canadense, houve uma declaração cretina de um policial: “parem de se vestir como vadias”. Este episódio deu origem à chamada “Marcha das vadias” que saiu de Toronto para o mundo. O manifesto tocava justamente num ponto que talvez ande por aí no inconsciente coletivo; o de que a mulher talvez tivesse provocado o criminoso, com o uso de determinadas roupas e determinadas atitudes, negando-se todos eles. Nada justifica a violência sexual.

Aqui no Brasil também pudemos testemunhar nossas “pérolas”, como em outubro passado quando do estupro de uma jovem catarinense. Um dos policiais no caso, diga-se de passagem uma mulher, deu dicas de como evitar um estupro;  se mora sozinha, evitar chegar sempre no mesmo horário, fazer caminhos diferentes todos os dias, enfim tentar driblar o marginal.  Apesar de bem intencionadas, estas dicas dão força à idéia de que o crime possa ser evitado pela vítima. Corroboram uma noção de que a potencial vítima poderia ter evitado a violência sexual, motivo pelo qual muitas mulheres deixam de denunciar as agressões. Posicionamentos assim são antigos; desde muito pequenas as mulheres são orientadas a não se expor para não dar espaço a abusos e assédios. De qualquer modo são baseadas na análise da vitimologia e fazem parte das estratégias para prevenção e alerta da população.  Nesse cenário entram diversas questões, muitas reverberadas por autoridades policiais, como culpabilizar a vítima, focar prevenção nela própria, a forma como a mulher ainda é vitimada pelo domínio do homem, aceitar que existam em nosso convívio criaturas capazes de tamanha atrocidade. Retratam o despreparo das autoridades em tratar um tipo de crime tão delicado, muitas vezes praticados por pessoas da família ou muito próximas.

Recentemente estatísticas do 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que em todo o País foram registrados 50,6 mil casos, o correspondente a 26,1 estupros por grupo de 100 mil habitantes. Em 2011, a taxa era de 22,1. O número de estupros é maior que o de homicídios dolosos no período. Reflete, é claro, o maior número de denúncias, em virtude da conscientização popular e das políticas públicas (hoje, com status de ministério, existe a Secretaria de Políticas para as Mulheres), a mudança no código penal que abrange o que deva-se chamar estupro (depois da Lei Maria da Penha qualquer ato libidinoso, mesmo sem conjunção carnal, é considerado estupro), mas ainda são números altíssimos.

Um crime com consequências tão devastadoras nos põe em alerta. Mais uma forma de violência contra a mulher, numa sociedade que padece de tantos tipos de violência. Estranhamente vai na contra-mão da história da humanidade em que mulheres se destacam cada vez mais em diversos papéis, ou por outra, é fruto da guerra dos sexos. Sejam quais forem as motivações, é difícil apontar soluções, mas certamente começam do reconhecimento do problema e perpassam pelo acolhimento das vítimas, lhes afastando a culpa e com isso estimulando as denúncias. Apenas a partir daí os criminosos poderão ser julgados, sendo impedidos de cometer novos crimes, além de coibir potenciais criminosos que muito se influenciam pela crença na impunidade.

domingo, 24 de novembro de 2013

PEDOCRACIA????



Recentemente a psicanalista Márcia Neder, professora e pesquisadora da USP e autora de livros como “Mãe desnecessária”, alcunhou a expressão pedocracia para dar nome ao que ela chamou de reinado mirim, a ditadura das crianças. A autora descorreu sobre o assunto em seu mais novo livro; “Déspotas mirins”, e usa o termo para descrever a mudança de mãos do poder nas famílias atuais, que está frequentemente depositado nas mãos das crianças.

Com o termo pedocracia ela não se refere aos pequenos caprichos, manhas e birras das crianças. Se refere a toda uma cultura em torno da criança, a uma certa idolatria, a uma busca de reconhecimento em que os pais passaram a achar que precisam dar sempre mais bens materiais, pequenas recompensas, sentindo-se sempre em dívida, numa inversão de valores em que não se estabelece claramente quem é o adulto na relação. A autora atribui essas mudanças às novas constelações familiares em que o pai perdeu aquele papel de único provedor ( do lacaniano “declínio da função paterna”) e a mãe saiu de casa para o mercado de trabalho, gerando uma “culpa” pela ausência que acabou sendo compensada pela permissividade, pondo o poder nas mãos dos filhos. Tal explicação de forma alguma encerra a questão; existem vários outros matizes nessa cartela de cores. Paralelo às ditas famílias tradicionais, surgiram famílias monoparentais e homoafetivas, que coloca a criança numa posição em que teoricamente requer uma atenção redobrada, tornando-a o centro do tal poder.

Um outro aspecto é a questão de querer ser amigo e acessível ao filho. Parece que mudou realmente o foco na relação entre pais e filhos. Os pais hoje querem ser amados e aprovados. As famílias de antigamente não tinham isso, os pais queriam obediência, eram seres absolutamente distanciados, o que não acho bom. Por outro lado esses pais eram obedecidos apenas no levantar de uma sombrancelha, dificilmente questionado e com maior possibilidade de manter o controle sobre a educação da criança. A grande vocação das gerações seguintes, no que se refere ao comportamento familiar foi se aproximar dos filhos, desejar dar ao filho tudo que não teve, inclusive não repetir o comportamento dos próprios pais, contudo o que se nota hoje é que por vezes se perdeu o equilíbrio. E de fato é uma linha tênue. Já me peguei em conversar com minhas filhas dizendo “sou sua amiga, mas não sou sua amiguinha”. Elaborar uma explicação pertinente, e convincente, para essa assertiva não é fácil, nem mesmo para um adulto.

Há algo ainda apontado como fator neste cenário, que me toca profundamente, que é a idealização da maternidade. O ideal daquela que abre mão de tudo pelo filho, em torno do qual sua vida gira. Isto vem da nossa natureza, do dom de gerar a vida e da missão de cuidar dela. Embarcar nessa viagem parece natural, o único caminho já que os trouxemos ao mundo, contudo é também uma grande cilada na medida em que abdicamos de nossa vida pessoal. Continuo achando que filhos são prioridade, mas não são a única. Acertar a mão aqui, mais uma vez equilibrar, é imperativo. Ser sim paizão e mãezona, mas se permitir espaço, ter objetivos além da paternidade, ter objetivos em outras áreas. Para nós mulheres é dilema conhecido; não queremos abrir mão da “multimulher”, nem perder a alegria das múltiplas realizações, de conciliar nosso universo interior com família e trabalho. Para os homens talvez seja tudo muito novo, o que à sua maneira também redefine a educação das crianças. E tem nessa idealização o desejo de sempre acertar, não poder perder a cabeça de vez em quando, estar sempre se cobrando. É preciso compreender que tudo faz parte do aprendizado, é possível, mais que isso, humano, errar. A contrapartida é saber reconhecer e voltar atrás.

As cartas estão postas na mesa. Nos compete usá-las da melhor maneira possível. De maneira diferente das relações políticas numa democracia, em que a alternância de poder é bem vinda, na relação com os filhos o poder precisa estar firme em algum lugar, na mão do adulto, servindo como esteio para margear até onde eles podem ir. Eu pessoalmente sou muito do diálogo, acho que se deve dar explicações, mas tudo isso até a página dois. Se a coisa se alonga e meninada resiste, recebe um “é assim e pronto; quem manda sou eu”. 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A ARTE DE DIZER NÃO





Nunca queria lhe dizer um NÃO. Até sabia, em teoria, que o NÃO é uma forma de educar e dar limites, mas na hora H, tal qual Takotsubo, meu coração se contorcia...Aff! Que estresse. Ficava imaginando o quanto te amo e não te quero ver sofrer, no quanto você é maravilhosa pra mim e merece tudo de melhor, no quanto a vida ainda vai dizer NÃO então para quê impingir sofrimento desnecessário. Afinal por você faço qualquer coisa. No fundo agradar você parecia a coisa sempre certa.

Apesar dessa sensação tão forte dentro do meu peito, seguia me agarrando ao bom senso de que você realmente precisa de limites para saber até onde pode ir, para saber onde termina seu espaço e começa o do outro, para crescer um ser humano íntegro e com valores. E repetidamente lá estava eu dizendo NÃO pensando SIM. E  mais, com certeza de que tudo era para o seu benefício. E sempre escolhia um NÃO carinhoso, sustentado por justificativas à altura de sua inteligência de criança, firme e acolhedor. Você nunca soube, mas era questão de tempo; se você resistisse um pouco mais estava frequentemente a ponto de ceder. Felizmente segui resistindo. É óbvio que devo ter derrapado algumas vezes, mas fazendo uma retrospectiva acho que foram pequenos e aceitáveis lapsos que não comprometem nosso produto final que é você um ser humano de quem possa se orgulhar e valha a pena.


É verdade que essa resistência de lhe dizer um NÃO ainda me ronda. Verdade seja dita; prefiro se puder ser um SIM.  Mas no dia em que fiquei apavorada com sua reação (mantendo a pose, é claro), trilhei mais uma vez a cartilha de explicar as razões com carinho, acolher suas possíveis recusas e lhe mostrar que estava com você acima de tudo. Esperei uma tempestade e você apenas disse “está bem, mamãe”. Foi o bastante para reconhecer nosso pacto selado muito tempo antes. E acabou sendo você a me ensinar a deixar de ter medo.  Entendi, finalmente, que no fundo você também sabia que o NÃO era necessário e até queria tê-lo para formar sua próprias referências. Concluí que dizer NÃO é uma arte.

domingo, 27 de outubro de 2013

FRANCAMENTE



Fico olhando as relações dos dias de hoje, parecendo que tudo perdeu o encanto. As novas possibilidades tecnológicas nascidas com as redes sociais são bem um retrato disso. É realmente incrível poder reatar contato com pessoas que estão do outro lado do mundo, ao mesmo tempo em que frequentemente é uma grande perda deixar o “tèt a tèt” com quem está ali a poucos passos. O resultado final desta equação muitas vezes é um distanciamento em que a franqueza acaba em segundo plano. Neste ponto vem a pergunta: relações de tamanha superficialidade toleram verdades? Já dizia o poeta Cazuza; mentiras sinceras me interessam. As pessoas em geral não querem saber da verdade, não querem respostas cruas, querem é ser agradadas, e muitas vezes ser agradado passa por ouvir verdades escamoteadas, travestidas de algum pacto subliminar defensivo.

Ser franco a respeito de determinado assunto, dependendo da situação, pode realmente ser um tipo de autosabotagem. Imagine no ambiente hostil das relações de trabalho você dizer abertamente ao seu superior o que acha de sua pretensa boa gestão. Deve ter sido de situações como esta que surgiu a expressão “sincericídio”. A franqueza pode ainda passar por grosseria. O que responder a uma noiva sobre o seu vestido, à beira do altar? Talvez tenhamos que aceitar o fato de que existem mentiras socialmente aceitas, e até bem vindas. Fora que se convive com as mentiras deslavadas e com o mau-caratismo. Aí é um cenário aterrador. De tantas meias verdades se constroem imensos castelos que desabam no primeiro sopro. Parece como se houvessem diversos universos paralelos ou se vivesse numa bola de sabão. Tudo tremendamente frágil onde se transita com total insegurança. Contra essa sensação tão angustiante vale a pena privilegiar a franqueza, poder sentir confiança no outro, cultivar as boas amizades e o amor entre as pessoas. Sob pena de soar piegas, é isto que nos alicerça, nos proteje e torna possível viver nesse mundo. Quero continuar crendo que há uma mágica em se viver e que ainda há lugar sim, para seguir francamente. Lembrei da letra do Rappa, na canção Auto-reverse; “nós estamos na linha do tiro, caçando os dias em horas vazias, vizinhos do cão, mas sempre rindo e cantando, nunca em vão”.


Vamos em frente com esperança, afinal dizer a verdade torna honesta uma relação, e ainda que eventualmente traga danos colaterais, será sempre o melhor caminho. A intenção que existe por trás das palavras pesa muito mais do que as palavras em si. E fique certo de que quando esta intenção é boa, e as palavras são ditas de maneira cuidadosa, a franqueza é absolutamente positiva, algo em que devemos sempre apostar. 

domingo, 29 de setembro de 2013

UMA INSPIRAÇÃO

Uma lembrança ficou na mente, presa com seus poderosos tentáculos, e uma das melhores coisas que lhe aconteceu. A vida até aquele momento tinha sido tão vazia, tão desprovida de emoção e repentinamente a pasmaceira se transformou. Pensando bem, as coisas apenas começaram a mudar quando Hanna se permitiu sonhar e enxergar que muito dessa emoção que tanto desejava é construída por cada um. Viver uma vida com pena de si própria, lamentando cada suspiro não era mesmo um caminho saudável, mas buscar energia para isso sempre foi difícil.

A manhã de sábado parecia normalmente entediante. Acordou tarde, demorou a sair da cama, e na verdade só o fez por conta do interfone. Um certo pacote foi deixado na portaria e a curiosidade a fez correr rapidamente os andares do prédio e correr para abrí-lo. Quem não se animaria com uma bela novidade para dar movimento à sua rotina tão estagnada?  Rasgou a embalagem com tanta pressa sem nem perceber que havia algo escrito nela. Descobriu um livro lindo da capa azul e embarcou em sua viagem.

Conheceu a história de uma adolescente que tratava um tipo raro de câncer. Surpreendeu-se com as inúmeras possibilidades que surgiram à frente daquela criatura de vida aparentemente tão finita. Não pôde deixar de pensar em si mesma, em gozar de boa saúde e ainda assim não dar valor a isso. Passava tanto tempo sentindo-se um nada que não conseguia enxergar as coisas de valor que estavam à sua volta. Tantas vezes sentiu-se pequena diante de tudo, tantas vezes desistiu sem nem mesmo ter tentado, tantas lágrimas derramou por coisas pequenas, tantas vezes se intimidou por obstáculos que jamais pensou em transpor. Se aquela menina, limitada por um torpedo de oxigênio, viveu seu pedaço de vida de maneira tão plena, amou e foi amada, do que não seria ela própria capaz? Em algumas horas leu o volume inteiro, aquele tipo de literatura que gruda igual a chiclete, e tomou coragem para retomar vários planos engavetados. Aquilo tinha sido tão tremendamente inspirador que chacoalhou de verdade suas emoções. A poesia dessa transformação é ainda maior; poucos dias depois a embalagem amassada do tal livro ainda estava no cesto de papéis, e algo escrito desta vez chamou atenção. O pacote era endereçado a vizinha da frente. Reembalou o livro, desculpou-se pelo ocorrido e entregou-o à verdadeira dona para seguir sua jornada de encantamento sobre alguns. Voltou a dançar, demitiu-se finalmente daquele emprego que lhe sufocava, retomou velhas amizades e se abriu a um novo amor. Era o impulso que nem percebera faltava.  Apenas um toque, uma constatação de que tudo de fato “vale a pena se alma não é pequena”, um olhar mais generoso, a consciência de uma força interior que sempre está lá basta manter a posse dela.

É possível encontrar essa inspiração onde menos se espera. É preciso estar atento e se permitir. Ninguém anda por aí dizendo que a vida é fácil, que tudo nela é suavemente palatável. Muitas vezes ela nos tomba tão intensamente que levantar parece impossível, mas somos capazes de seguir levantando sempre, e depois de cada tropeço o couro vai ficando mais curtido, e se resiste mais, ergue-se mais rapidamente e o melhor de tudo, aprende-se a evitar muitos dos tombos.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

UM LUGAR PARA AS FRUSTRAÇÕES



Frustração é definida como emoção que surge quando não se alcança algo almejado, do que se pode concluir que a vida é cheia de frustrações, pequenas ou grandes, pesarosas ou insignificantes, mas invariavelmente presentes. De fato não é sempre que se alcança um objetivo, e a maneira de lidar com isso é que difere as pessoas; sofrer mais ou sofrer menos é questão de ponto de vista, onde entra a resiliência ou flexibilidade, capacidade adaptativa para mudar o caminho, encontrar um lugar para as frustrações.


“Alguns infinitos são maiores que outros”.  E como Hazel Grace, personagem de A culpa é das estrelas, se aproxima do Poetinha – “que seja infinito enquanto dure”. Falam ambos do quanto é valioso viver cada momento intensamente, dar importância às coisas certas, banhar-se de um ânimo sempre renovado e assim dar uma chance para a felicidade. Muita coisa colocada no saco das frustrações é na verdade um olhar equivocado. Se o casamento durou 15 anos, vocês tiveram filhos lindos, contruíram muita coisa juntos e depois cada um tomou seu rumo não há porque dizer que não deu certo. Se não conseguiu entrar no curso que tanto sonhou e usou toda sua energia com um novo plano de vida que está sendo bem sucedido também não há porque dizer que fracassou. Canalizar as potenciais frustrações de maneira produtiva é a única forma de não ser marcado por elas. O contrário acontece quando se encara os obstáculos de forma negativa, tudo isso é descarregado no que não traz um passo adiante (como na comida, na bebida, em qualquer vício, ou até mesmo em culpar as pessoas que te cercam).

Quem sequer insinuou que exercitar esta capacidade de transformar é fácil? Algumas frustrações são como uma rasteira da vida após a qual levantar é um esforço sobre-humano; são paralisantes. É preciso determinação para sacudir a poeira e reerguer-se numa nova ordem. E viver é muito disto, é ter coragem pra mudar, transigir e se libertar das coisas ruins que muitas vezes nos tornam reféns, principalmente dentro de nosso próprio inconsciente. Ter bom humor é fundamental, rir de si mesmo, caminhar com leveza e saber que há muita coisa demasiado pequena para permitir lhe entristecer. E sabe de uma, um bom lugar para as frustrações não é um esconderijo; é onde ela possa ser encarada de frente e destituída de sua pretensa força.

domingo, 18 de agosto de 2013

FALTANDO CONTEÚDO








Impressionante a importância que se dá a certas coisas. Na era das redes sociais então, alguns fatos tomam proporções descabidas. Esta última semana foi palco de um debate escatológico em torno da genitália, mais especificamente dos pelos que a adornam (ou não). Uma questão tão íntima e pessoal passa ao domínio público e suprime tudo ao redor, chegando ao exagero de ser citada como tradução da personalidade feminina.

Modismos chegam em todas as áreas. Na depilação feminina o grito é depilar tudo. Ostentar algum nível a mais de pelos está relacionado a mulheres mais velhas, ultrapassadas. O contrário parece estar relacionado a um ar mais virginal. Mas será possível que até nisso vão meter o bedelho? Tudo tem seguir um padrão? Admirável mundo novo então; todos na linha de montagem. 

Não é de hoje que os pelos pubianos ficam no centro dos holofotes. Nos anos 70 as feministas os cultivavam, juntamente com os pelos das axilas em sinal de maturidade e independência, uma vez que eles surgem na puberdade em sinal justamente de maturidade física e sexual. Trata-se de algo simbólico, emblemático, representado inclusive nas artes – em 1800 o pintor espanhol Francisco de Goya mencionou os pelos pubianos em sua La Maja Desnuda, censurada pela Inquisição, mas foi em 1866 que a Origem do Mundo, do pintor francês Courbet escandalizou o mundo.

De qualquer sorte, é estranho ainda escandalizar, gerar algum nível de polêmica. Parece que a sociedade andou para lugar nenhum. O curioso é que estamos em 2013 e aparentemente mais moralistas do que nunca, a ponto de patrulhar tudo, inclusive a genitália alheia sem o menor pudor. Moralistas com uma falsa moral, absolutamente carentes de conteúdo, e este talvez seja o cerne da questão.

sábado, 10 de agosto de 2013



GRITA, PAI!

Papai acordou gritando. Pensei que era um pesadelo, mas ele disse que não, pelo contrário era um sonho, e agora tinha dado seu grito de libertação. Nada entendi, mas com certeza mamãe entendeu, pois deu-lhe aquele sorriso que só adulto sabe a razão. Continuei por ali para ouvir um pouco mais e tentar descobrir do que papai tanto queria se libertar, e o vi tão feliz que soltei um sonoro grita, pai!

Sobre a tal multimulher já ouvi mamãe falar várias vezes, parece que ela se acha uma, e parece que é legal ser, é tipo uma super-heroína que faz tudo, pensa em tudo e resolve tudo. Quando a professora falou em genética na escola me veio logo o pensamento de que eu também devo ser a tal mulher. Mamãe sempre fala sobre as exigências dessa nova mulher, do quanto os homens precisam correr para está em dia com os novos tempos.

Papai eu vejo sempre dizendo que alcança, mas nunca ouvi ele falar do multihomem. Vai ver não existe nem é genético! Tenho uma vaga explicação para isso; outro dia papai falou “homens são de Marte e mulheres são de Vênus”. Aquilo me assustou num grau! Somos todos extraterrestres? Foi nessa hora que pesquei a dita explicação; homens e mulheres são bem diferentes e entendem o mundo de forma distinta. E ele frisou que os homens, diferente das mulheres, não fazem várias coisas ao mesmo tempo. Eu já tinha percebido isso na escola.

Voltando ao grito do papai e do que ele estava se libertando, a verdade é que as mulheres exigiam muito que os homens mudassem, que fossem pais mais participativos (física e emocionalmente), porém não estavam preparadas para isso. Fiquei meio confusa porque a conversa saiu lá de casa para a sociedade – papai falou que a sociedade ainda não acolhe um homem se envolver nos cuidados dos filhos; para ele me levar ao banheiro no shopping foi uma novela, para tentar trocar minha roupa de balé no vestiário foi outra, para escolher nossas roupas na loja precisou enfrentar a ironia da vendedora. Contou que um amigo, recém-separado, optou por uma coisa chamada guarda compartilhada e a mulher resistiu porque achava que ele sozinho não saberia cuidar dos filhos. Foi quando papai falou de preconceito, que os homens já vinham com carimbo das mulheres, tachados de ausentes ou distantes.

O grito foi porque no sonho papai entendeu (na hora ela falou insight, mas ainda não perguntei o que quer dizer) que aquilo tudo era rótulo e que o amor de pai é diferente de amor de mãe sim, mas é tão incondicional quanto. Daí o grito, de argumentação, de posicionamento, de dizer ao mundo que o novo pai está aí dando a cara pra bater, errando, acertando e aprendendo como todo mundo. Então pulei em seu pescoço e repeti; grita, pai!

sexta-feira, 26 de julho de 2013

O DIA EM QUE KATE FOI PRA GALERA



Esta semana o noticiário não parou de falar no nascimento real. Tudo previsível e até justo, em que pese ser uma desproporcional invasão de privacidade, afinal a monarquia inglesa sempre desperta interesse. E já que o assunto é quase imposto, deliberadamente preferi olhar outro ângulo da notícia; o quanto esse evento na vida da princesa faz com que se aproxime de todas nós simples plebéias.

 Com a chegada do bebê vai ser preciso uma pausa no conto de fadas para lidar com os dilemas comuns aos mortais, que já vem no pacote da maternidade. Toda a avalanche de sentimentos e de dúvidas também batem à porta da realeza, como para qualquer mulher. A tarefa agora é nova, como o é para cada uma de nós; ter uma pessoinha que depende exclusivamente de você, para o bem e para o mal, sentir crescer incondicionalmente o amor e redimensionar as certezas que se tinha. Sai de cena a princesa e  estréia a mãe.

Além da proximidade emocional que experimentamos neste momento, tem o trabalho braçal do dia-a-dia (tudo bem que o pequeno príncipe já deve ter sua própria ala de criados). De qualquer modo ser lançada ao universo das fraldas sujas, do choro à noite, das cólicas e do coração muitas vezes apertado coloca a princesa definitivamente perto, afinal as fissuras no mamilo são pessoais e intransferíveis. 

O imaginário coletivo mantém pessoas como os membros da família real britânica tão distantes, e de fato vivem uma realidade quase que paralela, mas sempre há as interseções onde se vê o quanto têm de humanidade, são pessoas que sofrem, choram e enfrentam problemas como qualquer um. A princesa agora está logo ali, partilhando as agruras e os deleites de ser mãe. E que bom que pode ser assim. A vida é isso!