domingo, 22 de dezembro de 2013

A ORDEM NATURAL DAS COISAS

Atendi uma senhorinha, passada alguns anos dos oitenta. Nem parecia ter tal idade. O semblante era tranquilo, mas o olhar denunciava uma tristeza profunda. Apesar disso estava animada com a chegada do Natal e sentenciou de saída que a vida é ir tocando em frente – como diz a canção; “penso que seguir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”.

A tal senhorinha chegou dizendo que precisava ver o coração, se estava forte ainda, depois de tanto tempo. Comecei a fazer o exame e enquanto isso procedia minha anamnese para ajudar num possível diagnóstico. Enquanto via imagens de um paciente saudável, até surpreendentemente normal para aquela idade, e transmitia a boa notícia ela seguia contando sua história.

Já foi logo dizendo que o coração só parecia normal. Que o visto por fora nem de longe exprimia o que ia lá por dentro. Dizia carregar no peito um sofrimento tão imenso que por vezes sentia estar para explodir. Existem coisas na vida que marcam tão profundamente que mesmo com o passar dos anos não é possível apagar. Pode ser que a cicatriz vá ficando menos profunda, mas desaparecer é um luxo inatingível. E foi assim que a senhorinha me contou que existe uma ordem natural das coisas e que subvertê-la é ruim e em geral injusto. Há um fluxo natural que se perturba facilmente, é verdade, mas há também uma incapacidade humana de controlá-lo, ainda que na maior parte da nossa existência ostentemos a ilusão de fazê-lo. Ao longo de suas mais de oito décadas havia experimentado aquela sensação de ter o chão desaparecendo sob seus pés diversas vezes. O estranho (ou maravilhoso) é que nem por isso estava imune a novas tormentas, não tinha blindagem contra o sofrimento e vivia sempre os acontecimentos de uma forma diferente, com um olhar pueril. É bem verdade que a longa experiência de vida lhe facultava uma forte dose de resiliência, mas ainda assim sentia o impacto. Foi dessa forma quando o filho mais novo morreu em seus braços, de uma doença, segundo ela, de velho. Como é que podia aquilo? Os pais verem o filho partir. Definitivamente não é natural. E não importa quantos outros filhos se tenha, quantos anos se passe, para ela é como se tivesse sido ontem, na mente e na pele.

Eu, tão pequenininha naquela hora, reduzida diante da maturidade daquela senhorinha, daquela narrativa que tanto apertava meu coração de mãe, o que tinha a dizer? Desapareceu a cardiologista, ficou ali simplesmente a mulher, me agarrando nos meus mantras íntimos pessoais para alento nas horas difíceis “andar com fé pois a fé não costuma falhar”; “o senhor é meu pastor e nada me falta”. Não posso e nem me atrevo a imaginar que dor é essa de perder um filho, e permanecer de pé, a despeito de amargá-la (sem  contudo  se tornar amarga) todos os dias. É um dos encantos da minha profissão de lidar com gente e se deixar tocar por elas e por seus relatos de vida. E que força desse ser que passei a admirar em poucos minutos, se alegrando com o Natal, ressaltando que é o momento em que mais sente alívio de suas próprias dores por saber que tantos já passaram por dores piores e renasceram de alguma forma, que no fundo tudo tem um propósito.

Pensei tanta coisa para confortá-la, porém no final quem me confortou foi ela – “sabe aquela canção, minha filha, ela continua; ‘cada um de nós compõe a sua história e cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz’”. 

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