sábado, 8 de março de 2014

RECOLHENDO AS CINZAS





Nestes dias de cinzas vejo meu amigo homossexual. Na folia de Momo ele se realizou. Sentiu-se livre bailando sua cabeleira importada, seus cílios postiços e sua mais nova boca carmim. Estava feliz em mostrar sem pudores seu feminino, afinal nesta festa tudo é meio que permitido. Não se pode dizer  que passou por aí tão docemente incólume; há sempre os olhares que o fazem lembrar algum nível de inadequação, por mais que ele próprio já tenha em si muitas destas questões resolvidas.  Apesar e acima de tudo segue em frente, aproveitando o anonimato. A festa se vai  e ele se despe daquela exuberância projetada e volta ao seu cotidiano de batalhar cada centímetro de ser quem é.

Nestes dias de cinzas vejo outro amigo homossexual. Não se monta no carnaval, pelo contrário sempre se traja como um homem comum. Passou as festas numa praia, isolado com seu companheiro. No dia-a-dia não se revelam um casal. Preferem se preservar, não se mostrar é uma espécie de escudo. Temem ser julgados e segregados.  Não recrimino; é mesmo difícil encarar o tom de reprovação, ser agredido por atitudes e repreensões subliminares. Também segue no anonimato. E volta ao seu cotidiano, se protegendo do jeito que entende ser o melhor, o que não deixa de ser uma batalha.

Falar em homofobia não é retórica. Ao lado de outros tipos de segregações que tanto presenciamos, ela aprisiona de uma forma muito cruel. Vai de um extremo a outro, desde a simples falta de aceitação até assassinatos em nome de uma pseudomoral. Estes dias carnavalescos são bem libertários para alguns;  abertamente ou por trás de máscaras e fantasias. Pena que ainda sofrem demais com sua condição, seja qual for a forma que escolham se relacionar com a sociedade. Para o mundo heterossexual são desde um modo de vida diverso até anomalia genética; sua condição é explicada desde como fruto do ambiente até como psicopatologia. Difícil encontrar seu lugar, mesmo nas coisas mais sutis, mesmo nos que em princípio aceitam. Ou você nunca ouviu “que seja homossexual, mas não me paquere”, “tudo bem desde que não seja um filho meu”, “beije, mas não na minha frente”. Nessa seara não se trata de gostar ou não. Trata-se de aceitar o outro. E cada vez mais este assunto vai ter que frequentar nosso almoço de domingo, com uma explicação coerente para nossas crianças, que certamente vai muito além do binômio normal/anormal.

Queria apenas falar de coisas alegres.  Fico a me perguntar se isso é possível. O mundo é cheio de imperfeições e nós seguimos sobrevivendo muitas vezes em meio a uma realidade absolutamente caótica. E a crua realidade se apresenta a quem quiser ver. O primeiro amigo apanhou de uns garotos “muito machos” na volta para casa, ofendidos que estavam pela simples presença do outro. O segundo amigo voltou para casa sem ser agredido fisicamente, mas sufocou seus gestos de carinho para o companheiro e evitou os vizinhos na garagem do prédio. Ambos violentados, cada um à sua maneira.

Lamento. Isso não é suficiente. Levanto minha escrita mais uma vez como arma. Ainda que uma gota nesse imenso oceano. Espero realmente não me permitir intolerâncias. E que isso contagie quem me rodeia. Quem sabe assim não precise abrir o jornal e ler a notícia de um pai que mata o filho a pauladas porque ele tinha um “jeitinho”. E não precise ver esse ou aquele amigo homossexual recolhendo as cinzas.