Atendi uma senhorinha, passada alguns
anos dos oitenta. Nem parecia ter tal idade. O semblante era tranquilo, mas o
olhar denunciava uma tristeza profunda. Apesar disso estava animada com a
chegada do Natal e sentenciou de saída que a vida é ir tocando em frente – como
diz a canção; “penso que seguir a vida seja simplesmente compreender a marcha e
ir tocando em frente”.
A tal senhorinha chegou dizendo que
precisava ver o coração, se estava forte ainda, depois de tanto tempo. Comecei
a fazer o exame e enquanto isso procedia minha anamnese para ajudar num
possível diagnóstico. Enquanto via imagens de um paciente saudável, até surpreendentemente
normal para aquela idade, e transmitia a boa notícia ela seguia contando sua
história.
Já foi logo dizendo que o coração só
parecia normal. Que o visto por fora nem de longe exprimia o que ia lá por
dentro. Dizia carregar no peito um sofrimento tão imenso que por vezes sentia
estar para explodir. Existem coisas na vida que marcam tão profundamente que
mesmo com o passar dos anos não é possível apagar. Pode ser que a cicatriz vá
ficando menos profunda, mas desaparecer é um luxo inatingível. E foi assim que
a senhorinha me contou que existe uma ordem natural das coisas e que subvertê-la
é ruim e em geral injusto. Há um fluxo natural que se perturba facilmente, é
verdade, mas há também uma incapacidade humana de controlá-lo, ainda que na
maior parte da nossa existência ostentemos a ilusão de fazê-lo. Ao longo de
suas mais de oito décadas havia experimentado aquela sensação de ter o chão
desaparecendo sob seus pés diversas vezes. O estranho (ou maravilhoso) é que
nem por isso estava imune a novas tormentas, não tinha blindagem contra o
sofrimento e vivia sempre os acontecimentos de uma forma diferente, com um
olhar pueril. É bem verdade que a longa experiência de vida lhe facultava uma forte
dose de resiliência, mas ainda assim sentia o impacto. Foi dessa forma quando o
filho mais novo morreu em seus braços, de uma doença, segundo ela, de velho. Como
é que podia aquilo? Os pais verem o filho partir. Definitivamente não é
natural. E não importa quantos outros filhos se tenha, quantos anos se passe,
para ela é como se tivesse sido ontem, na mente e na pele.
Eu, tão pequenininha naquela hora,
reduzida diante da maturidade daquela senhorinha, daquela narrativa que tanto
apertava meu coração de mãe, o que tinha a dizer? Desapareceu a cardiologista,
ficou ali simplesmente a mulher, me agarrando nos meus mantras íntimos pessoais
para alento nas horas difíceis “andar com fé pois a fé não costuma falhar”; “o
senhor é meu pastor e nada me falta”. Não posso e nem me atrevo a imaginar que
dor é essa de perder um filho, e permanecer de pé, a despeito de amargá-la (sem
contudo se tornar amarga) todos os dias. É um dos encantos
da minha profissão de lidar com gente e se deixar tocar por elas e por seus
relatos de vida. E que força desse ser que passei a admirar em poucos minutos,
se alegrando com o Natal, ressaltando que é o momento em que mais sente alívio
de suas próprias dores por saber que tantos já passaram por dores piores e
renasceram de alguma forma, que no fundo tudo tem um propósito.
Pensei tanta coisa para confortá-la, porém no
final quem me confortou foi ela – “sabe aquela canção, minha filha, ela
continua; ‘cada um de nós compõe a sua história e cada ser em si carrega o dom
de ser capaz de ser feliz’”.