domingo, 10 de agosto de 2014

GUEST POST



Hoje a Contadora de Histórias Coracy Schueler (https://twitter.com/CoracySchueler) me apresentou o que chamei de "O TEXTO", sabe aqueles que traduzem bem você? Especialmente recebido neste dia dos pais, aproveito para partilhar como forma de homenagem ao meu pai, que não está mais neste plano, aos pais de meus amigos e aos meus amigos pais. Graças a Deus tenho o privilégio de dizer que saboreei meu pai em toda sua intensa doçura e acidez, bem ao modo dos melhores pratos que compõem o tempero das famílias. E sigo saboreando minha imensa família que vai se extendendo em ramificações por aí, pelo sangue, pelo amor ou pela simples afinidade.

O texto é trecho do livro "O arroz de palma", primeiro romance do escritor Francisco Azevedo. Conta uma história sobre a família, enquanto instituição, que segue firme, absorvendo todas as mudanças em nossa sociedade. Neste trecho faz uma deliciosa alegoria  do que é uma família. Saboreie também!

Família é um prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema...não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes dá até vontade de desistir, mas a vida sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele, o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente. Já estão aí? Todos? Ótimo. Agora ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza. Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco, mas se misturados com com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente, e nos parecem estranhas ao paladar tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa. Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo tem que ser muito bem pesado, muito bem medido. Oura coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família só porque meteu a colher na hora errada. O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Osvaldo Aranha; Família a Rossini, Família à Belle Manière; Família ao Molho Pardo (em que sangue é fundamental para o preparo da iguaria). Família é afinidade, é à Moda da Casa. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há famílias doces. Outras meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só pra manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir. Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. aproveite o máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.

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