quinta-feira, 31 de julho de 2014

ARMÁRIO DAS EMOÇÕES




Ela lida com a morte frequentemente. Por força do ofício aprendeu a criar certo distanciamento, o mínimo para ter condições de apoiar as famílias que naquele momento estão perdendo seus entes queridos. Isto mesmo; o mínimo. A morte a atinge como a todos, lhe traz questionamentos, porém com o tempo ela transmutou isso numa aproximação com o Divino. Sempre que perde um paciente, lhe dedica uma oração e agradece a oportunidade de ter passado por sua vida. Assim vai segurando a avalanche de emoções que vêm com o fim até onde enxergamos. Costuma dizer que deveria fazer análise para exorcizar um certo peso que ao longo dos anos parece se acumular, mas segue arrumando  um lugarzinho pra cada experiência no seu interior, como quem arruma um armário cheio de gavetas extremamente organizadas até o dia em que aparece uma peça grande demais, pesada demais e inesperada demais.

Caminhar por aí com seus planos de futuro, comum à humanidade desde que se tem conhecimento. É da curiosidade e da vontade de querer sempre mais que se alimentam as grandes descobertas e os grandes avanços das sociedades. Olhar para a frente e fazer planos é visceral, intuitivo, é dar o próximo passo. É tido como sinal de responsabilidade e maturidade programar-se e ter provisões para mais a diante. Tudo certo porque as expectativas pessoais não contemplam possíveis obstáculos ou tragédias, doenças ou males de qualquer ordem. Pelo contrário é quase que uma exigência que se viva com otimismo. E pensando bem é difícil idealizar aquilo que se costuma chamar felicidade no esteio da certeza de que tudo pode se acabar a qualquer momento.  É essa sensação que te assalta quando a vida joga na cara sua finitude, sobretudo tendo como pano de fundo a dimensão materialista que sufoca o mundo contemporâneo. Perde-se o chão, é como se estivesse indo do nada para lugar nenhum e o amanhã fosse apenas uma ilusão. Está posto um grande dilema existencial.

A humanidade desenvolveu ao longo do tempo formas diversas de lidar com esse dilema. Para as vertentes religiosas os conceitos de vida eterna ou de vida após a morte servem como consolo. Para os mais céticos a crença de deixar sua marca no mundo, através dos seus feitos e criações, de certa forma imortaliza. Retomando o tema felicidade, é fácil constatar que a alegria de viver resiste a tudo isso, pois se apoia naqueles que nos rodeiam, no amor que dedicamos a quem se foi e que não se acaba, no sorriso que se estampa no rosto do filho caçula que nada entendeu daquele momento. Talvez seja a consciência da temporalidade que dê sentido à vida, por trazer ao ser humano a urgência em viver o hoje da melhor maneira possível, de usar seu tempo na construção de algo que lhe seja valioso. A certeza da finitude da vida, ora consciente, ora inconscientemente, acaba por elevar a importância do hoje ao mais alto grau.

Apesar disso, como simples mortais, pequenos diante de tantos mistérios no universo, não passamos por essa etapa sem sofrimento pela dificuldade de lidar com as perdas. São momentos realmente duros, de pôr em cheque a razão das coisas serem como são, mas a verdade é que não está em nossas mãos o controle que muitas vezes ilusionamos ter. Ainda mais quando a ordem tida como natural das coisas muitas vezes é subvertida. Mais uma vez somos pegos de surpresa, arrancados da suposta segurança do nosso mundo particular, sacudidos pela realidade. Dada a inexorabilidade dos fatos nos resta recolher os cacos e usar a energia do tombo para prosseguir.

E ela segue arrumando o armário das gavetas nem sempre tão  organizadas até o dia em que aparece mais uma peça grande demais, pesada demais e inesperada demais.

2 comentários:

  1. Poxa, que texto!!!! Fiquei sem fôlego!! Parabéns pelo trabalho que realiza com tanto carinho e dedicação, prima!!
    Adorei seu blog. Vou seguir!! Beijos e saudades. Méa

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Prima, querida! antes tarde do que nunca te responder. Ando sem conseguir parar por aqui. Beijão!

      Excluir