segunda-feira, 13 de agosto de 2012

AS FACES DE JORGE

Uol entretenimento


Acho que era sonho. Estava vivendo num mundo fantástico onde tudo parecia possível.

De repente me vi cercada por meninos de rua. Estranhamente não sentia medo – apesar daquele jeito um tanto aterrorizante do grupo, conseguia enxergar algo de inocente e humano naquelas figuras – afinal eram crianças. Pedro Bala, Pirulito, João Grande e Dora aos poucos foram se desvendando à minha frente. Eram fruto de uma sociedade que não sabia o que fazer com seus marginalizados e se tornaram de certa forma heróis a la Robin Hood. No reformatório aprenderam toda sorte de crueldade, mas também aprenderam a cuidar uns dos outros e talvez fosse isso que tornasse possível vê-los como meninos. Através deles pude enxergar o que ia além das paredes do meu apartamento, do quartinho das minhas filhas, da proteção do meu condomínio e dos vidros fechados do meu carro. A desigualdade social era mãe daqueles garotos, e a falta de oportunidades marcou definitivamente seus destinos. Por sorte iriam crescer e cada um tomar seu rumo, bom ou ruim, só o tempo iria dizer.

Continuei como que flutuando, mas tinha certeza que estava na Bahia e eram tempos de cacau quando ouvi pronunciar o nome de um tal Coronel Boaventura. Quem o chamava era um tal Capitão Natário, que vinha chegando com dona Zilda, Bernarda e as crianças. Aquilo me chocou um pouco, mas para os padrões da época e para a região era normal. Ali era comum se amasiar, já que não tinha Igreja nem padre, e esses arranjos de família apareciam aos bocados. Encantador mesmo eram os romances que surgiam em meio a tanta disputa de terra e lei de jagunço. Apesar das inúmeras desgraças que se abateram sobre aquelas terras; enchente, peste e invasão, a força do sertanejo sempre se fazia presente.  

E por falar em força precisei de muita para não cair naquela fofoca. Era domingo de carnaval e morrera um tal Vadinho, rebelde, irreverente e impulsivo, conhecida figura da boemia de Salvador. Dizia-se a boca pequena que sua esposa, Dona Flor, cozinheira de mão cheia, dividiria o velório do defunto com mais um sem número de amantes. A viúva oficial guardou longo luto e aos poucos voltou a se abrir para o mundo. Aí que entra Teodoro, o farmacêutico, exata antítese de Vadinho. Ainda assim contraíram matrimônio, Teodoro e Flor, pouco tempo depois de um casto  noivado. Não há como saber ao certo, mas fato é que Dona Flor passou a ver seu falecido marido e tê-lo no seu leito com Teodoro. No princípio tentou negar e reprimir, mas a coisa tornou-se tão real e irresistível que passaram a manter um casamento a três em perfeito equilíbrio (com a ressalva de que Teodoro nada sabia). Esse sim é um grande exemplo de como as diferenças podem conviver em harmonia, equilibradas por uma mulher.

Aliás, mulher é um bicho esquisito mesmo. De passagem pelo Vesúvio, ouvi por aquelas bandas a história de uma chamada Gabriela. Conta o povo que ela moça simplória e com dotes culinários invejáveis agarrou pelo coração e pelo estômago o sírio (e não turco) Nacib. O problema é que parece que não arrebatou apenas ele, e sim encheu de desejos vários senhores da cidade. O rebuliço que se seguiu na cidade de Ilhéus ressoa até hoje. Ainda mais numa terra em que a honra era lavada com sangue, como se pôde ver nas mortes dos amantes Osmundo e Sinhazinha pelas mãos do Coronel Jesuíno. Terra de mulheres fortes como a impetuosa Malvina ou a voluptuosa Maria Machadão. Terra também de disputas políticas acirradas como as que rivalizavam Ramiro Bastos e Mundinho Falcão. Tudo isso para dizer que mulher é um bicho esquisito mesmo, ou por outra, Gabriela não era mulher de se adaptar a uma vida regrada de mulher casada daquela época. Mesmo cortejada e desposada por Nacib, sucumbiu a sua natureza nos braços de Tonico Bastos. Prova de que não é de hoje que a mulher não toma cabresto.

E outra mulher avessa aos cabrestos apareceu diante de mim. Seu nome era Tieta. Vivera aventuras amorosas na juventude que escandalizaram a pequena Santana do Agreste. Acabou expulsa da cidade por seu pai, Zé Esteves, depois de ser denunciada pela irmã mais velha, a rancorosa Perpétua. Agora voltava para as areias do seu passado, rica e poderosa, causando mais uma vez rebuliço em sua cidade natal. A rotina da cidade foi transformada pela presença de sua ilustre filha, que se tornou benfeitora por sua grande generosidade. Por outro lado voltou a chocar com sua tórrida paixão por Cardo, o sobrinho seminarista. A força do feminino se revela mais uma vez, pois apesar de ser obrigada a deixar a cidade mais uma vez inesperadamente após o segredo de sua vida ser revelado, Santana do agreste jamais seria a mesma.

Eram tantas pessoas de personalidade surpreendente, criaturas com a alma tão rica e tantas histórias para contar; Quincas Berro d’água, Tereza Batista, Pedro Arcanjo, Corró, Paulo Rigger, Pedro Ticiano e tantos tipos que retratam com fidelidade, ainda nos dias de hoje, as várias faces desse nosso Brasil, da miscigenação, do cincretismo religioso, das injustiças sociais e lutas políticas. Então não era um sonho, era na verdade uma viagem na imaginação; estava lendo Jorge Amado, sempre atual, mesmo 100 anos depois de seu nascimento.

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