Recentemente a
psicanalista Márcia Neder, professora e pesquisadora da USP e autora de livros
como “Mãe desnecessária”, alcunhou a expressão pedocracia para dar nome ao que
ela chamou de reinado mirim, a ditadura das crianças. A autora descorreu sobre
o assunto em seu mais novo livro; “Déspotas mirins”, e usa o termo para
descrever a mudança de mãos do poder nas famílias atuais, que está
frequentemente depositado nas mãos das crianças.
Com o termo pedocracia
ela não se refere aos pequenos caprichos, manhas e birras das crianças. Se
refere a toda uma cultura em torno da criança, a uma certa idolatria, a uma busca
de reconhecimento em que os pais passaram a achar que precisam dar sempre mais
bens materiais, pequenas recompensas, sentindo-se sempre em dívida, numa inversão
de valores em que não se estabelece claramente quem é o adulto na relação. A
autora atribui essas mudanças às novas constelações familiares em que o pai
perdeu aquele papel de único provedor ( do lacaniano “declínio da função
paterna”) e a mãe saiu de casa para o mercado de trabalho, gerando uma “culpa”
pela ausência que acabou sendo compensada pela permissividade, pondo o poder
nas mãos dos filhos. Tal explicação de forma alguma encerra a questão; existem
vários outros matizes nessa cartela de cores. Paralelo às ditas famílias
tradicionais, surgiram famílias monoparentais e homoafetivas, que coloca a criança
numa posição em que teoricamente requer uma atenção redobrada, tornando-a o
centro do tal poder.
Um outro aspecto é a
questão de querer ser amigo e acessível ao filho. Parece que mudou realmente o
foco na relação entre pais e filhos. Os pais hoje querem ser amados e aprovados.
As famílias de antigamente não tinham isso, os pais queriam obediência, eram seres
absolutamente distanciados, o que não acho bom. Por outro lado esses pais eram
obedecidos apenas no levantar de uma sombrancelha, dificilmente questionado e
com maior possibilidade de manter o controle sobre a educação da criança. A
grande vocação das gerações seguintes, no que se refere ao comportamento
familiar foi se aproximar dos filhos, desejar dar ao filho tudo que não teve,
inclusive não repetir o comportamento dos próprios pais, contudo o que se nota
hoje é que por vezes se perdeu o equilíbrio. E de fato é uma linha tênue. Já me
peguei em conversar com minhas filhas dizendo “sou sua amiga, mas não sou sua
amiguinha”. Elaborar uma explicação pertinente, e convincente, para essa
assertiva não é fácil, nem mesmo para um adulto.
Há algo ainda apontado como
fator neste cenário, que me toca profundamente, que é a idealização da
maternidade. O ideal daquela que abre mão de tudo pelo filho, em torno do qual
sua vida gira. Isto vem da nossa natureza, do dom de gerar a vida e da missão
de cuidar dela. Embarcar nessa viagem parece natural, o único caminho já que os
trouxemos ao mundo, contudo é também uma grande cilada na medida em que
abdicamos de nossa vida pessoal. Continuo achando que filhos são prioridade,
mas não são a única. Acertar a mão aqui, mais uma vez equilibrar, é imperativo.
Ser sim paizão e mãezona, mas se permitir espaço, ter objetivos além da paternidade,
ter objetivos em outras áreas. Para nós mulheres é dilema conhecido; não
queremos abrir mão da “multimulher”, nem perder a alegria das múltiplas
realizações, de conciliar nosso universo interior com família e trabalho. Para
os homens talvez seja tudo muito novo, o que à sua maneira também redefine a
educação das crianças. E tem nessa idealização o desejo de sempre acertar, não
poder perder a cabeça de vez em quando, estar sempre se cobrando. É preciso
compreender que tudo faz parte do aprendizado, é possível, mais que isso,
humano, errar. A contrapartida é saber reconhecer e voltar atrás.
As cartas estão postas na mesa. Nos compete
usá-las da melhor maneira possível. De maneira diferente das relações políticas
numa democracia, em que a alternância de poder é bem vinda, na relação com os
filhos o poder precisa estar firme em algum lugar, na mão do adulto, servindo
como esteio para margear até onde eles podem ir. Eu pessoalmente sou muito do
diálogo, acho que se deve dar explicações, mas tudo isso até a página dois. Se
a coisa se alonga e meninada resiste, recebe um “é assim e pronto; quem manda
sou eu”.